quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Xangô Rezado Bem Alto

Por Ascom CEDIR

Crédito: xangorezandoalto.blogspot.com.br
Há 102 anos, Maceió assistiu a um dos mais emblemáticos – e tristes – episódios de intolerância religiosa no Brasil. Foi no dia 1º de fevereiro de 1912, quando a Liga dos Republicanos Combatentes, de oposição ao governo do Estado de Alagoas, incitou a população a destruir todas as casas de culto afro-brasileiros da capital alagoana. O evento ficou conhecido como ‘Quebra de Xangô’. Naquele dia, terreiros foram invadidos. Pais e mães de santo foram espancados em praça pública. Seus objetos de culto e roupas litúrgicas, retirados dos terreiros destruídos, foram queimados. Até hoje não se sabe quantos terreiros foram atingidos, nem quantas pessoas foram assassinadas.

Sabe-se, porém, que a Liga dos Republicanos Combatentes era uma milícia armada, integrada por operários e liderada pelo tenente reformado Manoel Luiz da Paz, veterano da Guerra de Canudos. E que fez o que fez por conta de uma briga política entre a oposição e o então governador de Alagoas, Euclides Vieira Malta. Às vésperas da eleição, a oposição acusa Malta de recorrer aos terreiros para manter-se no poder à custa de ‘feitiçarias dos Xangôs’. A 'denúncia', largamente noticiada pelo Jornal de Alagoas – também de oposição –, desmoralizou o governador perante a sociedade, exatamente da forma como a Liga desejava.

Crédito: Secom Governo de Alagoas
Há séculos a sociedade brasileira é ensinada a classificar, ainda que inconscientemente, como 'sujo', 'demoníaco', 'feio' e 'vergonhoso'  tudo o que vem da África -- incluindo as religiões. Por isso as notícias envolvendo o governador Euclides Vieira Malta e a prática de cultos afro causou tanto estardalhaço: porque já naquela época havia esta mentalidade e, portanto, era ‘um absurdo’ que um governador se prestasse ao papel de recorrer a pais e mães de santo para o que quer que fosse. 

Diante da violência brutal a que foi submetido, tendo suas práticas religiosas expostas como algo menor, prejudicial e sem valor, o povo de santo sentiu medo. Nas décadas seguintes, passou a se manifestar religiosamente de forma quase inaudível – e, certamente, invisível. Yalorixás, babalorixás e filhos de santo passaram a praticar uma modalidade de culto chamada ‘Xangô Rezado Baixo’, em segredo, sem o uso de atabaques.

Embora décadas tenham se passado desde o ataque, ainda hoje é possível observar as consequências funestas da ‘Quebra de Xangô’: embora existam cerca de 2 mil terreiros em todo o estado de Alagoas, umbandistas e candomblecistas pouco se expõem (fenômeno, verdade seja dita, que acontece também em outros estados da federação: estão aí os dados do IBGE que não nos deixam mentir). Apenas em 2012, quando o ataque completou 100 anos, o Poder Público se posicionou sobre o episódio; foi quando o atual governador de Alagoas, Teotônio Vilela Filho, assinou um pedido de perdão oficial a todas as comunidades de terreiro do estado pela barbárie ocorrida naquele 1º de fevereiro.

A partir disso, um festival de afirmação dos cultos afro-brasileiros foi idealizado. Batizada de ‘Xangô Rezado Alto’, a iniciativa, promovida pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL), visa a recuperar o passado e também a autoestima dos religiosos que, por medo, deixaram de assumir e praticar sua fé publicamente. Mais que isso: tem o objetivo de lembrar ao Poder Público que não deve, jamais, fechar os olhos diante das injustiças. Se antes Xangô era rezado baixo, desde 2012 Xangô é rezado em alto e bom som – em praça pública, numa festa de devoção e liberdade, por pessoas que aprenderam que não devem jamais sentir vergonha ou medo de professar publicamente sua fé.


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